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domingo, 8 de fevereiro de 2009

DA ESPECIFICIDADE CINEMATOGRÁFICA A PARTIR DE EISENSTEIN

DA ESPECIFICIDADE CINEMATOGRÁFICA A PARTIR DE EISENSTEIN:
UM ENSAIO SOBRE CINEMA E LINGUAGEM
By Peterson Soares Pessoa


Parte I – O espírito manipulador

Um fato que deve ser levado em consideração no estudo da teoria de Eisenstein é a forma com que evitava um certo “naturalismo”, uma representação objetiva do conteúdo a ser filmado. Pode-se perceber nitidamente em seus filmes que nenhuma cena poderia ser pensada previamente sem algum corte. Isso pode ser faci lmente percebido tanto na filmografia de Eisenstein quanto nos seus escritos, principalmente nas suas grandes coletâneas teóricas, A Forma do Filme e O Sentido do Filme, que, segundo Christian Metz, emanam para o leitor moderno uma espécie de fanatismo da montagem. Tal posição, ress alta o estudioso, parece negar constantemente beleza e valor a qualquer instância profílmica2. Ao que tudo indica, isto se dá pela pr etensão do cineasta de constituir a montagem como base para a linguagem cinematográfica.
Num primeiro momento, como objeto natural, o fragmento de cena a ser montado é analisado em sent ido próprio assim como nas suas possibilidades de figuração, e seus elementos const itutivos (luz, tonalidade de cor, geometria, etc) revisados de forma isolada. Este primeiro momento Metz chama de momento da paradigmática. O caráter natural dos el ementos filmados é tomado em separado como preparação da montagem do filme; afinal de contas, dentro da dinâmica de direção cinem atográfica, a filmagem de cada plano é feita separadamente. Já num segundo momento, o da adequação dos planos dentro da estrutura do roteiro – o que dá um sentido de narração a todo material filmado – é, segundo Metz, o momento da sintagmát ica, no qual:

O objeto natural, em seu sentido empírico, não é tomado como um modelo dentro da montagem.
É o objeto constituído que se torna modelo dentro do processo de construção da seqüência
de imagens do filme, a única naturalidade que permanece, parece ser, é da imagem capturada,
enquanto objeto do mundo empírico. Embora aparentemente muito próxima do real, esta reconstrução das imagens produzidas na realidade empírica focada pela câmera, não tem como finalidade uma representação do real, são imagens ficcionais. Segundo Roland Barthes, não trata de uma reprodução ou de uma imitação da aparência concreta do objeto profílmico, mas um produto da techné. Em suma: é produto de uma atividade de manipulação. De acordo com Metz, é esqueleto estrutural do objeto dentro da dinâmica de um segundo objeto, no entanto, ainda possuindo um caráter de pró-tese. A metodologia da montagem vem justamente para ditar as regras dessa manipulação, assim como para propor novas formas de pensar e incitar através imagens, tanto que, a grande ambição de Eisenstein era a de adequar um ensinamento ou drama (inserido no roteiro) na manipulação, para que se tornasse ele próprio um acontecimento sensível para o espectador; de efetuar uma techné da percepção: o cinema intelectual. O cineasta nunca pretendeu mostrar o devir do mundo, mas sim um “ponto de vista ideológico sobre o devir do mundo, pensado e signif icante”.
Para o cineasta, dentro da perspectiva de Metz, “o sentido não basta, precisa acrescentar
a significação”, em outras palavras, não basta apenas que o filme possua um bom e nredo ou uma
boa história, mas que as imagens povoem de uma forma muito intensa o imaginário dos expect adores.
Um exemplo disso pode ser tirado de uma seqüência de Potemkin, onde são filmadas, separadamente, três diferentes estátuas de leão, que colocadas em seqüência, formam um grande sintagma; a impressão aparente é a de que o leão de pedra se levanta. Est a seqüência se coloca frente ao espectador, aliada ao enredo do filme, como um símbolo unívoco da revolta operária.
Além da preocupação de criar uma bela seqüência, um adorno para a história, há também, segundo Metz, a pretensão de tornar estas imagens similares a um fato de língua. Entretanto, Metz, de forma convicta, considera que a manipulação soberana (montagem) não é uma via fértil para o cinema. Se for vontade do cinema ser linguagem, primeiro faz -se mister que desista da tentativa de manipular as imagens como palavras na estrutura de uma pseudosintaxe baseada em técnicas de montagem. Não se pode negar que, se pudermos imaginar uma evolução histórica de uma metodologia da montagem, é certo que alguns procedimentos maturados pelo tempo acabam se tornando convenção. Metz observa que muitos montadores se deixaram seduzir por uma antecipação da sedimentação desses procedimentos, acabando por enxergar uma língua: convenções de uma língua das imagens. Somente após ter percebido o filme como um todo é que se pode ter noção de uma possível sintaxe que o governe. No entanto, muito se pensou que o entendimento do filme advinha de uma sintaxe preconcebida pelo montador ou senão pelo diretor. O fato da inteligibilidade da sobreimpressão 5 de imagens, fenômeno que dá movimento
a imagem, nunca poderá absolutamente esclarecer a dinâmica de um enredo de um filme
6. A narrativa de um enredo se torna inteligível para nós, na medida em que o filme fala através de
imagens do mundo empírico. Sendo assim, a sobreimpressão qu e ocorre no filme é análoga à
fusão de imagens que se desdobra no processo de cogn ição. Portanto, a vantagem da linguagem
cinematográfica é a sua possibilidade de identidade com ações e paixões pr óprias do expectador
com as que ocorrem dentro do universo da diegese do enredo:
[...] só os recursos de sintaxe que se tornaram por demais convencionais provocam dificuldades de co mpreensão
nas crianças ou nos “primitivos”, a não ser que o enredo do filme e o universo da diegese, se mpre
compreensíveis na ausência de tais recursos, cheguem a fazer com que se entendam estes mesmos
recursos. 7
Entretanto, não se deve esquecer que embora conectado ao universo subjetivo do espe ctador,
o filme em si não é um discurso auto -suficiente, pois necessita de um certo background
social pré-concebido pelo diretor, focalizando o público que deseja atingir.
Parte II – Os paradoxos do cinema falado
Não estavam totalmente errados os que achavam que o c inema mudo falava demais. 8
Eisenstein, assim como muitos outros teóricos russos, muito defendeu uma pureza da linguagem
cinematográfica9 (e naturalmente a da montagem) colocando o cinema (mudo) como pr aticamente
uma pura linguagem do real. No entanto, ressalta Metz, ao mesmo tempo em que os
teóricos da montagem definiam o cinema com o uma linguagem não-verbal, acabavam por detectar
um mecanismo pseudoverbal atuando no filme. Não é difícil encontrar nos escritos de Eisen stein,
assim como nos de outros teóricos contemporâneos do cineasta, relações como: a imagem
como uma palavra; ou a seqüência montada como um arranjo de palavras numa frase 10. Fugindo
de uma característica verbal da li nguagem, o cinema, na tentativa de desenvolver a sintaxe da sua
linguagem, acabou por se fazer uma duplicata. O paradoxo maior veio com o cinema falado. Não
obstante, mesmo com o aparecimento da palavra falada no filme, não houve, a princípio, uma
modificação substancial nas teorias do fi lme. A palavra entrou na teoria cinematográfica, observa
Metz, “como uma coisa a mais, recém-chegada, que ficou no corredor – e isto bem no momento
em que o cinema mudo [...] desaparecia totalmente das telas”. A recusa não era essencialmente
à dinâmica sonora do filme, mas de cunho estrito à palavra. O Manifesto do Contraponto Orquestral de Eisenstein, Alexandrov e Pudovkin, preocupa-se com um enriquecimento do contraponto visual com a dimensão auditiva, para fins de preenchimento de certas lacunas do cin ema mudo, no entanto, para desapontamento de alguns, os autores tomam apenas a instância do som. O filme ainda é percebido por eles como um discurso proferido. Entretanto, não custa lembrar o contexto do ano de 1928, no qual os russos colhiam os frutos de seu sucesso com as virtuoses ex ecutadas com a montagem. Dentro da discussão sobre a palavra no cinema há um ponto que, em certo sentido, é inegável: a aproximação entre cinema e teatro. Segundo Metz, desde 1930 estuda-se uma diferença capital e de difícil contestação entre a palavra no teatro e no cinema: o verbo no teatro é soberano e constitui em grande parte o un iverso representado; já no cinema, a palavra é subalterna e constituída pela instância diegética. Anterior a qualquer in stância, a palavra diz alguma coisa, enquanto as imagens, mesmo quando “dizem” muita coisa, tal dizer deve ser mo ntado (produzido).
O cinema falado apenas se auto-afirmou de fato quando se percebeu como uma linguagem
maleável que nunca se põe como pré-determinada e independente o suficiente para permitir, dentro de seus materiais constituintes, um trânsito entre diferentes formas de linguagem . A par tir do momento que o cinema se coloca como arte, acaba assim ilando para si problemas e aporias que são próprias de toda a arte. Inovações técnicas ou metodologias de composição geralmente não são suficientes para solucionar tais problemas, no entanto, pelo menos, os direcionam para contextos atualizados e mais específicos, na medida em que o cinema vai se desenvolvendo historicamente. Nesse sentido, tudo indica que determinar uma “especificidade” da linguagem cinematográfica a partir das técnicas de montagem ou outra instância como dramaturgia ou roteiro acaba
tornando-se um empecilho para o próprio fruir da linguagem cinemat ográfica. De fato, não se pode com esta premissa deixar de se aprofundar no estudo da metodologia da montagem, haja vista a grande gama de possibilidades plásticas que ela oferece as imagens que potencializam o efeito de persuasão, uma retórica da imagem. Se Eisenstein, com seus cortes precisos e bem montados teoricamente é um dos pais do cinema revolucionário, da montagem intelectual, co m seu legado, também é um dos pais da montagem das sensações, tanto usada na linguagem de propaganda, que impressiona e seduz a tantos no horário nobre de nossos tel evisores. De acordo com Buck-Morss isso advém pelo
[...] fato de que na montagem, como em geral na alegoria, “as partes tenham maior autonomia enquanto signos”, podem ter dois resultados antitéticos, e isso se transforma em fonte de uma instabilidade epist emológica. De um lado pe rmite ao produtor cinematográfico manipular os significados, com o resultado que o “engajamento” da arte se torna indistinguível da propaganda política. De outro lado, isso pode levar o artista a ver a justaposição casual de objetos “encontrados” como magicamente dotados de “significado” próprio,[...]
Eisenstein é dialético na medida em que concebe a imagem cinematográfica a partir do co nflito,
e, tendo em vista a dinâmica emocional com que os conceitos propostos são trabalhados, pode-se considerar a proposta do cinema intelectual uma proposta positiva. No entanto, De leuze considera que essa pretensão de Eisenstein e de outros grandes pioneiros do cinema e da montagem (Vertov, Gance, Elie, etc.) – a de impor um choque às massas fazendo -as pensar através da imagem em movimento –, atualmente faz sorrir. O fato é que o choque intelectual que se propunha facilmente poderia ser confundido com uma violência figurativa e sugestiva – um formalismo bobo e não comprometido com a autenticidade – que coloca as potencialidades do cinema apenas nos limites da lógica, desprovendo a imagem do seu caráter sublime; tira seu poder de tornar-se sublime. Tendo em vista tal fato, colocar absolutamente o princípio de montagem como a instância principal da formação de sentido e narratividade do filme, ao que parece, torna -se insustentável.
Talvez a especificidade do cinema seja a de não possuir uma especificidade, justamente por ser um plano aberto para o diálogo de várias formas de linguagens, sejam visuais, sejam sonoras, sejam verbais.

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