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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

MEU CINEMA SERÁ SUA HERANÇA (Edu Reginato)


Escrevi esse ensaio sobre o cinema de Sam Peckinpah para a revista Taturana nº2 que foi lançada no festival de cinema de Londrina 2008, na revista algumas partes foram cortadas para se encaixar na diagramação e, claro, porque exagerei um pouco no número de palavras, mas como não exagerar quando se fala sobre Sam Peckinpah. Abaixo postei o ensaio na íntegra e dando partida para essa volta a escrever no Cinema Mundo.

SAM PECKINPAH – MEU CINEMA SERÁ SUA HERANÇA

Um velho troca o pneu de sua caminhonete, vez ou outra olha para a estrada vazia como se esperasse algo. Nessa mesma estrada, um pouco adiante, num Ford, um casal discute o fato de ter deixado um companheiro para trás. A garota se vira e debruça no banco de trás para pegar uma pêra. Ela morde a fruta, deliciada, e oferece um naco para seu namorado. Nesse momento, eles avistam o velho que tenta trocar o pneu e que está acenando, pedindo ajuda. O casal reconhece o velho, é o pai do companheiro que eles deixaram na cidade. Os dois decidem parar para ajudá-lo. O homem desce do carro enquanto a mulher o espera. O velho fica tenso, vê outro carro se aproximando, ele olha para os lados. Perdizes voam em disparada das árvores. O homem percebe algo errado. Um arbusto balança furtivamente. O velho se joga embaixo da caminhonete. O homem e a mulher se olham. Uma emboscada. Uma rajada de metralhadora se projeta do arbusto. Os corpos do casal são perfurados por dezenas de balas. Tudo está em câmera-lenta. O sangue jorra em grande quantidade dos corpos que parecem, agora, bonecos de pano. Em segundos o casal está morto.
Enquanto isso, trinta anos adiante, um jovem caminha por um dos corredores do Hotel Taft procurando pelo quarto 568. O jovem entra no quarto e mantem as luzes apagadas, fecha todas as percianas, vai ao banheiro e escova os dentes. Ele está tenso. Uma mulher entra, Mrs. Robinson. O jovem tranca a porta. Ela fuma, blasé. Eles ficam frente a frente, o jovem a beija desajeitadamente. A bela mulher de meia idade recebe o beijo de forma mecânica e avisa que vai se despir. O jovem simplesmente não sabe o que fazer.
O que essas duas situações em tempos distintos têm em comum?
Ambas são cenas de dois clássicos do cinema americano do final dos anos sessenta: “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas” de Arthur Penn e “A primeira noite de um homem” de Mike Nichols.
Esses dois filmes constituem autênticas subversões de gêneros e alteraram o panorama cinematográfico americano abrindo caminho à produções mais negras, políticas, controvertidas e cujos protagonistas eram anti-heróis e sexo e violência eram mostrados sem pudores. A produção americana entrava numa nova fase e a substituição do velho e desadequado “Código de produção”, em 1968, por um sistema de classificação de filmes veio ajudar nessa trasformação.
Era um reinício para o cinema americano para se igualar, em termos de fertilidade e inovações, com a cinematografia européia que tinha Godard, Bunuel, Lelouch, Resnais, Fellini e Visconti como seus expoentes.
O cinema americano dos anos setenta se mostrou fértil e extremamente contra-cultural e apresentava uma América derrotada, partida e cheia de anti-heróis trágicos e errantes, tudo diferente do “American Way of Life” dos anos cinquenta e sessenta. Era o momento de mostrar as feridas que não cicatrizaram e estavam escondidas pela faixada da sociedade americana. Era a hora de ousar.
É um dos cineastas que mais ousou foi um tal de Sam Peckinpah.
Peckinpah veio da televisão onde realizou alguns tele-filmes de Western. No seu início de carreira foi pupilo de Don Siegel, grande cineasta de filmes de ação que faria imenso sucesso com a série do detetive Dirty Harry estrelada nos anos setenta por Clint Eastwood.
O primeiro filme para cinema de Peckinpah foi “Parceiros da Morte” (Deadly Companions, 1961), seguido por “Pistoleiros ao entardecer” (Ride the High Country, 1962), “Juramento de Vingança” (Major Dundee, 1965) e sua obra-prima, “Meu ódio será sua herança” (Wild Bunch, 1969). Esses são os filmes do diretor da fase sessentista, no entanto, coloco o último como pertencente a fase dos anos setenta por características marcantes que seguirão toda sua filmografia setentista.
Mas, para falar de Peckinpah vou me concentrar em quatro filmes que para mim representam o melhor do cineasta nos anos setenta: o já citado “Meu ódio será sua herança” (1969), “Sob o domínio do medo” (1971), “Os Implacáveis” (1972) e “Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia” (1974).
Sam Peckinpah nasceu em Fresno, Califórnia, em 1925, sua família era constituída de juízes, magistrados e advogados e ele cresceu ouvindo discussões calorosas, durante as reuniões de família, sobre ética, moral e códigos de honra. São esses valores que ele carregou para seus filmes e são a espinha dorsal de seus enredos e o que move cegamente seus protagonistas. Outra marca do diretor é a latente sexualidade presente nas películas, sejam os desejos reprimidos ou a sexualidade primitiva e descaradamente escancarada.
Seus protagonistas são homens viris, bêbados, sexistas, violentos, apaixonados, irracíveis, cínicos, mas que conduzem seus fiapos de vida e se apoiam em códigos de honra até as últimas consequências e nada mais são do que os alter-egos do diretor: um homem ambíguo, alcóolatra e violento que desenvolvia um inovador cinema de autor e que lutava ferozmente contra o sistema canhesta dos estúdios hollywoodianos. São históricas suas brigas com produtores e atores durante a produção de seus filmes.
Não eram por menos, os filmes de Peckinpah chocaram os estúdios e o público. Nunca mais os Westerns e filmes de ação seriam os mesmos. Seja pela violência estética inovadora ou pelo conteúdo ambíguo, pessimista e extremamente violento.
Peckinpah era apaixonado por filmes de Western, adorava Sergio Leone e elegeu seu gênero em praticamente toda sua filmografia; até os filmes que não são Westerns, não deixam de ser westerns contemporâneos no caso, como comentaremos.
No entanto, a inovação foi subverter os valores e a estética do filme americano por excelência – o Western. Peckinpah tirou os bons moços Gary Cooper, John Wayne e Alan Ladd para por um bando de homens desenganados, sujos, hostis. Foi tirar as boas moças de família por prostitutas, assassinas e ninfomaníacas. O Velho-Oeste de Peckinpah é uma américa arrasada onde os códigos de honra estão sendo substituídos por códigos de conduta pré-capitalistas e novas tecnologias e gestões de poder que não podem mais ser acompanhadas por esses velhos homens. É uma América desenganada que reflete num filme de velho-oeste ou num faroeste contemporâneo as feridas dos anos setentta, vide assassinato de Martin Luther King, a guerra do Vietnan, Watergate, a morte de JFK entre outros.
Encontramos em seus filmes todos esses personagens desenganados que apenas se sustentam por seus códigos de honra, sua ética tortuosa mas inabalável. Apesar de todas as contravenções o cinema de Peckinpah é moralista.
Em “Meu ódio será sua herança”, o Bando Selvagem (Wild Bunch, do título original) é liderado por Pike Bishop (William Holden), homem austero, mediamente culto e honrado mas que não pensa duas vezes em meter um tiro na cabeça de alguém que se interpõe em seu caminho. Esse bando já causou graves prejuízos à ferrovia que contrata um antigo companheiro, Deke Thornton (Robert Ryan), que Pike abandonou numa cilada. Deke junto com um grupo de esfarrapados caçadores de recompenças sai à caça do bando. Peckinpah vai apresentando todos os personagens e o elemento psicológico de cada um. Para fugir dos caçadores, o bando selvagem se refugia no México, para mim é extremamente simbólica a sequência que todos bebem tequila em silêncio passando a garrafa de mão em mão, nesse momento um código de honra e fidelidade está fundamentado entre o bando. No México eles travam negócios com um ditador mexicano, General Mapache (Emilio Fernández), sujo, ignorante e psicopata e aí começa o que, realmente, Peckinpah quer mostrar. Devido à alguns quiprocós do destino um dos companheiros do bando, um mexicano Angel (Jaime Sánchez), é preso, torturado e morto pelo ditador. O bando fica num dilema entre vingar o amigo ou seguir suas vidas errantes. O bando, principalmente, Pike está percebendo que o tempo dos homens do Western está acabando, os cavalos já estão, aos poucos, sendo trocados por carros e a iminência de uma guerra - 1a Guerra Mundial - está pairando pelo ar, eles mesmos já estão velhos e não aguentarão a rotina de foras da lei por muito tempo e sem um último grande butin, logo não passarão de velhos mendigos errantes. Então, por que não, usar as últimas forças e o resto de balas para honrar o companheiro morto e acabar com a festa do ditador porco.
O clímax do filme entrou para a história do cinema.
Um massacre num forte mexicano, belamente fotografado (Lucien Ballard) com várias câmeras e magistralmente editado (Lou Lombardo); tanto é que alguns críticos na época consideraram a sequência como algo tão bom quanto a da escadaria de “O Encouraçado Potenkin” de Eisenstein. Sua montagem não apenas se concentra na construção narrativa mas antes no efeito psicológico. Peckinpah trabalhou na longa cena de tiroteio, recursos inéditos como o slow-motion, as múltiplas pespectivas, o super-close, o “chicote”, o zoom e galões e galões de sangue espirrando tanto dos “heróis” como dos “vilões”. Desse filme em diante Peckinpah foi saudado com a alcunha de “O poeta da violência”.
Curiosamente, o tema do velho-oeste e do velho cowboy com seus valores e códigos de honras que não servem para nada numa sociedade psicopata e materialista que vive escrava da violência foi abordado no livro “Onde os velhos não têm vez” (No Country for Old Men) de Cormac McCarthy e, posteriormente, magnificamente filmado como um anti-faroeste pelos geniais irmãos Coen.
As características desse cineasta estavam por vir de forma latente em “Sob o domínio do medo” (Straw Dogs) baseado na novela “The Siege of Trencher’s farm” de Gordon M. Willians e que segue uma vertente de filmes setentistas com tema semelhante como “Amargo Pesadelo” (Deliverance, 1972, dir: John Boorman) e “Quadrilha de Sádicos” (Hill Have Eyes, 1977, dir: Wes Craven) e que, atualmente, o diretor Michael Haneke usou tão bem em seu “Violência Gratuita” (Funny Games, 1997).
A pergunta do filme é: até que ponto podemos suportar sermos racionais para sobreviver à selvageria e violência desmedida?
O matemático David Summer (Dustin Hoffman) é um pacato cidadão norte-americano, recém-casado, que se muda para aldeia inglesa, cidade natal de sua esposa. Amy (Susan George) é uma garota jovem, sensual e atrevida e os dois não estão vivendo um bom momento conjugal. Vamos resumir de forma rudimentar: David não está dando conta sexualmente de Amy e ela está com tesão à flor da pele. Todos no vilarejo, incluindo sua esposa, o consideram um covarde. David está em meio à um ambiente hostil, entre homens ignorantes, bêbados e violentos. E é essa inadaptação social que gera todos os conflitos que culminam num dantesco clímax. Os personagens são extremamente verossímeis e tridimensionais no entanto não transmitem nenhuma empatia, esse distanciamento aliado a crua ultra-violência geram o charme dessa outra obra-prima de Peckinpah.
A enorme casa onde o casal vive está sendo reformada por um bando de homens de um clã da cidade, homens (adivinhe?) extremante hostis, dentre eles, um ex-namorado da fogosa Amy que tanto ele como ela ficam se insinuando. David percebe o problema mas não reage, assim se imerge mais em seus cálculos matemáticos.
Amy implora pelo marido ausente, é perceptível no seu figurino cada vez mais sensual. Resumindo, Amy transa com o ex-namorado; no entanto, tudo dá errado e ela é estuprada por um companheiro do bando, cena chocante e com a montagem paralela para contrapor as reações distintas dos dois personagens. A tensão cresce de forma alarmante e numa sucessão de escolhas erradas o casal abriga um doente mental do vilarejo acusado de sumir com a filha do patriarca do clã e que juntos cercam a casa de David para linchar o acusado. Nesse momento David assume uma postura protecionista e sua moral, ética e racionalismo se afloram. Ele decide não entregar o acusado para o clã. Daí em diante é Sam Packinpah em estado bruto, cru. David terá que protejer a todo custo seu castelo, seu forte contra um bando de selvagens enlouquecidos. Como sempre a montagem (Paul Davis, Tony Lawson e Roger Spottiswoode) é genial aliada a fotografia (John Coquillon) suja em tons de terra.. Muito slow-motion e sangue, muito sangue e violência. O animal adormecido que existe dentro de cada um de nós desperta em David. Esse selvagem que aflora nos homens racionais quando libertados das amarras sociais que definem o seu comportamento. O filme permite análises diversas sobre comportamento, antropologia, sobre os mecanismos do desejo e da ruptura do racional. Uma fábula brilhante dos conturbados anos setenta.
Em 1972, Peckinpah lança “Os Implacáveis”, que é um filme menor, mesmo assim, um ótimo exemplar do estilo do diretor. “Os Implcáveis” é um Thriller vigoroso escrito pelo cineasta Walter Hill (para mim um dos grandes cineastas a perpetrar o código de honra masculino em seus filmes; que, de certa forma, são vigorosos porém machistas). É, basicamente, um filme de ação ambientado no Texas e que tem todos os elementos de western, novamente. O roteiro não é extraordinário, é até simples demais. Doc McCoy (Steve McQueen) está preso há quatro anos e não aguenta mais a prisão e a saudade de sua esposa Carol (Ali MacGraw). Doc pede para a esposa avisar a “bandidagem” local que o passe dele está à venda e que precisam para isso tirar ele da prisão. A esposa vai falar com um caipira mafioso da cidade e consegue o passe de saída do marido, mas ela paga na moeda peckinpahniana, quer dizer, com o seu belo corpo. Doc recebe a ordem de roubar o banco da cidade e para isso os mafiosos caipiras dispõem dois ajudantes para ele, o freak Frank Jackson (Bo Hopkins) e o sinistro Jack Beynon (Ben Johnson). O assalto é efetivado com maestria mas Frank Jackson “pisa na bola” e é morto por Jack Beynon que tenta matar Doc e ficar com dinheiro, no entanto, Doc se dá bem e pensa ter matado Jack. Quando vai entregar o dinheiro para o mafioso caipira, Doc descobre que sua bela esposa transou com o cara em troca da saída dele da prisão. Doc enciumado mata o Mafioso. Daí em diante, o filme vira um jogo de gato e rato, todos caçam Doc e Carol em busca do dinheiro, seja Jack Beynon que não morreu ou o bando dos mafiosos caipiras. O que faz desse filme algo diferente é, justamente, o timing perfeito que Peckinpah imprime nas cenas de ação e novamente a precisa edição de imagem (Robert L. Wolfe) e fotografia (Lucien Ballard), e, nesse caso, um adicional especial é a precisa trilha incidental de Quincy Jones que mistura sons orgânicos e jazz. Além da interpretação dos atores, Steve McQueen (sempre ótimo) e roubando a cena Ben Johnson como o bonachão psicopata Jack Beynon. Curiosamente, o filme diferente de toda a filmografia de Peckinpah tem até final feliz!
Agora, quanto a questão de ousar, Peckinpah sentiu-se a vontade na realização de “Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia”, seu filme mais pessoal e o primeiro a não ter nenhuma intervenção na edição dos executivos dos estúdios. O filme foi feito com baixíssimo orçamento (os grandes estúdios estavam fartos do comportamento irracível do diretor e seus estouros de prazos e orçamentos) e todo em locação no México, além dos diálogos serem em espanhol e inglês, coisa que na época o público americano abominava, e de certa forma continua abominando, americano odeia ler legendas.
“Tragam-me a cabeça…” é praticamente um filme experimental, um faroeste contemporâneo existencialista flertando com outra vertente setentista, o road-movie. O patriarca (homem conservador, cristão e mafioso) de uma abastada família mexicana, interpretado por Emilio Fernández (o General Mapache, de “Meu Ódio será sua herança”), descobre que o homem que engravidou sua jovem filha é Alfredo Garcia, e, para preservar a honra da garota, oferece um milhão de dólares para quem trouxer a cabeça do pobre Alfredo. Vários grupos de caçadores de recompença saem a caça do prêmio. Um desses grupos vai parar num boteco mal frequentado de Tijuana onde o anti-herói mais anti-herói peckinpahniano toca piano sempre bêbabo e suarento, Bennie (em interpretação espetacular de Warren Oates). Bennie conhece Alfredo Garcia ou, pelo menos, conhece alguém que conhece Alfredo Garcia e combina que por dez mil dólares trará a cabeça do desgraçado. Dentro de seu carro velho junto com sua noiva prostituta Elita (Isela Vega) que indica o caminho para encontrar Alfredo que, pasmem, está morto e enterrado num cemitério de um vilarejo esquecido por Deus e pelo Diabo. Bennie consegue a cabeça de Alfredo mas o preço foi enorme e custou o amor de sua vida e sua sanidade, além de um monte de cadáveres que deixou no caminho. Esse filme é o precurssor e fonte de qualquer Tarantino ou Robert Rodrigues. É a cartilha do filme tarantinesco moderno, e em termos estéticos parece muito com um clássico brasileiro, “O amuleto de Ogun”, de Nelson Pereira dos Santos. O filme de Peckinpah é um apanhado de violência desrregrada, muita nudez e sexo, um pouco de exploitation, sepulturas violadas, cadáveres desmembrados e acidentes de carros. Além de um ótimo tiroteio final onde toda estética peckinpahniana está presente.
“Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia” é um filme muito especial, pois fecha dois ciclos: o ciclo de filmes bons de Peckinpah e o ciclo do fim do oeste-americano que teve início com “Meu ódio será sua herança”. Nesse estranho filme todos os elementos e teses do diretor são concluídos e o resultado é o mais negro possível. É um filme cultuadíssimo, um verdadeiro estudo sobre os temas frequentes do diretor, como a cobiça, o tédio, o amor, o sonho, o remorso, a vingança e o senso de justiça de um homem que se reconhece sem direção.
O filme tem um clima de desolação opressivo graças, novamente, à fotografia (Álex Phillips Jr.) e sua ambientação em locais áridos, perdidos no mapa do México. No entanto é permeado de momentos curiosos como a bela e tocante sequência com Bennie e Elita, debaixo de uma árvore, traçando planos para o futuro, ou a sequência de humor negro em que Bennie, dirigindo seu carro já tresloucado, conversa com a cabeça podre de Alfredo Garcia (idéia que seria usada por Robert Rodrigues em “Sin City”, no diálogo entre Clive Owen e o cadáver de Benício del Toro).
Concluindo, filme obrigatório um dos mais belos e densos do diretor e, sem dúvida, um dos melhores filmes dos anos setenta.
Sam Peckinpah realmente era um poeta – não esse poeta da violência como o chamam – mas, um poeta de grandes e sujas imagens. Declamava em seus versos um sórdido panorama humano. Suas imagens registram a bárbarie social, onde a violência constitui as relações sociais e o mundo dos homens se animaliza. São imagens-metáforas que sugerem estranhamento, alienação e animalização, esses detalhes, por exemplo, são percebidos na introdução de dois filmes aqui comentados. Em “Meu Ódio será sua herança”, crianças extasiadas de felicidade brincam com um escorpião que é devorado por formigas, e em “Os Implacáveis”, o primeiro plano são de cervos que parecem pastar livres mas a câmera se distancia e percebemos que eles estão cercados dentro do pátio da prisão, onde está aprisionado o indomável Steve McQueen.
Assim, esses quatro clássicos mantém um equilíbrio de temática e estética, graças ao apurado “Mise en Scène” de Peckinpah e o conjunto de profissionais que sempre participaram de seus projetos. No entanto, volto a tocar nos asssuntos que permearam toda a obra de Peckinpah: a frágil natureza humana em choque com uma América que começa a ruir por dentro devido à sua ganância, soberba, xenofobismo e crueldade. Nos anos setenta todos os tabus estavam sendo quebrados e os americanos começaram a se indagar sobre detalhes díspares e ambíguos de sua política, de suas guerras e de sua sociedade “pré-yuppie”consumista, predadora, competitiva e preconceituosa. Quando John Lennon declarou em 1970 a famosa frase que selou o fim dos Beatles, talvez não estivesse falando apenas da cena musical, mas, premonitoriamente, sobre um contexto bem mais abrangente: “O sonho acabou” (The drean is over).
Dessa forma, junto com outros grandes cineastas que representaram o cinema de autor dos anos setenta, Sam Peckinnpah deixou uma marca distinta. Um tipo de filme muito pessoal, um manifesto contra a bárbarie humana. Seus protagonistas buscam o sonho, ou algo que alivie sua dor diante de tanta miséria. O mesmo acontecia com o demônio-interior desse diretor maldito que procurava, talvez, a redenção de seus pecados.




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