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domingo, 22 de fevereiro de 2009

O NOVO CINEMA JAPONÊS - PARTE 3

NAOMI KAWASE - O real como um milagre
perguntas e introdução por Felipe Bragança
respostas traduzidas do japonês por Nilce Naomi Fukumitsu e Momoko Watanabe

Naomi Kawase nasceu em Nara, Japan, e graduou-se na Escola de Fotografia de Osaka. Sua estréia na direção aconteceu com o curta-metragem documentário Embracing (1992), que recebeu o Prêmio de Menção Especial FIPRESCI no Festival Internacional de Cinema de Yamagata, seguido de White Moon (1993). Seu primeiro longa-metragem foi Suzaku (1997), que ganhou vários prêmios, incluindo o Caméra d’Or no Festival de Cannes. Sua filmografia ainda inclui This World (co-diretora, 1995), The Weald (1997), Kaleidoscope (1999), Hotaru (2000), Shara (2003), Birth/Mother (2006) e A Floresta dos Lamentos, que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2007.

Sobre o cinema de Naomi Kawase, mais especificamente sobre Floresta dos Lamentos lateja na tela com uma pregnância impressionante, como uma catarse cítrica e suave, uma pujança amorosa e efusiva, alegre e dolorida. Inquietação fantasmagórica da alma e do corpo, o cinema de Kawase nos convida a uma experiência ao mesmo tempo dolorida e prazerosa, a uma catarse de dor ou um cafuné carinhoso, que parecem conseguir conjugar a contemplação e a total imersão no mundo. Nessa primeira conversa sobre um cinema que ainda não se decodifica claramente (mas que permanece recorrente na memória), tento entender alguns de seus trajetos, propostas, métodos, sensações. Feito tentar decifrar uma música, uma experiência tátil de contração (e recomposição) do espaço-corpo do cinema.
Escrevo então, em inglês e por e-mail, alguns suspiros para Naomi ouvir. Após espera de alguns dias, eles me chegam de volta, respondidos – só que em japonês! Embora a beleza particular de tal escrita possua enorme força (e por isso mesmo os leitores podem ver as respostas assim como foram recebidas aqui), ainda assim nos era essencial conseguir também alguma tradução destas palavras. Foi aí que, graças à generosa intervenção do nosso parceiro e editor da Cinequanon, Cesar Zamberlan, e do amigo também cinequanônico Fábio Yamaji (com a ajuda de sua irmã), aqueles ideogramas viajaram de volta ao Japão, encontrando a tradução de duas conhecidas do Fábio e de sua irmã - as acima creditadas. Depois deste trajeto circular virtual (mas tão real) por essa rede de afetos entre Japão-Rio de Janeiro-São Paulo-Japão, finalmente conseguimos colocá-las no ar, para o leitor, onde quer que ele esteja:

1 - Talvez pareça banal começar uma entrevista pela questão tão difusa da inspiração ou da pulsão criativa (algo tão intangível), mas sua cinematografia mais recente expressa uma vontade tão desesperada de vida que passa a se tornar impossível não se interessar pelo que te move... De onde vem tanta vontade de cinema?
Naomi Kawase - Eu não comecei a produzir filmes em homenagem a algum diretor ou algum filme. Os homens são únicos desde o nascimento. Por conta disso, às vezes sentem solidão no coração. Porém, na realidade, todos nós temos a experiência de ligação com alguém (ao menos a própria mãe). No final, as vidas são ligadas, conectadas. No início da minha carreira, eu produzia filmes para matar essa solidão... era isso. Agora, estou produzindo os filmes para retratar a beleza da ligação e conexão das vidas.

2 - Há uma força dramática muito intensa na forma como você coloca seus personagens sempre em alguma espécie de abismo afetivo, de uma certa assombração e um certo espanto com a vida. Como você tenta passar isso para o filme, para a equipe, para a atmosfera do set – esse sentimento de encantamento e risco?
Naomi Kawase - Eu vejo a beleza no mundo através de homens que chegaram ao limite. Tento chegar na verdade da beleza através dessa visão, desse ponto-de-vista. Peço sempre aos operadores de câmera que sintam e pensem no conceito do filme, não com a cabeça, mas com o coração. Eu, como diretora, sempre tento fazer com que as pessoas envolvidas no projeto vivam num mundo mais improvisado, livre. Não gosto que fiquem presas ao roteiro.

3 - Fale um pouco do processo de construção cênica. Há uma energia de vida única em diversas de suas passagens, que nos lembram uma documentação de um balé, de uma dança – como o parto e a dança em Shara (imagens ao lado), as brincadeiras da mulher e do homem no jardim e na mata em Floresta dos Lamentos. Me fale um pouco da forma como você decupa, organiza e recorta suas cenas com a câmera.
Naomi Kawase - Quando estou no set, tento conseguir uma cena boa em um take único. Não fazemos muitos ensaios. Eu gostaria que os atores conhecessem o mundo do filme pela primeira vez na hora de filmar. Os operadores de câmera também. Mas, como eles são técnicos, têm de ensaiar até algum ponto... Não chega a ser, porém, um esquema de filmagem exatamente, é como se fosse uma preparação para poder captar qualquer movimento e ação que os atores venham a nos dar.

4 - Ainda afetado por Floresta dos Lamentos, te pergunto: a partir de que momento, nesse turbilhão de afetividades, improvisos, liberdade, que parecem estar misturadas a seu rigor conceitual de um certo desespero alegre, você consegue perceber, organizar, o filme que estás dirigindo? Onde termina a vida e começa a intervenção estrutural do filme e como isso se dá na busca de uma alegria essencial que parece estar misturada a esse desespero?
Naomi Kawase - É por dentro da própria experiência do filme que a tristeza se transforma em alegria. No meu filme, os atores interpretam os papéis como estivessem vivendo o seu dia-a-dia, na vida real. As câmeras filmam este acontecimento com calma. É claro que existe um conceito minucioso na minha visão, mas que ficará mais claro na hora de edição somente. Na hora de filmar a cena, eu me concentro em registrar a realidade como se fosse um milagre.

5 - Seu cinema carrega uma pessoalidade tamanha que parece mesmo se aproximar de uma certa ingenuidade criativa. Essa ingenuidade me faz pensar: você se sente trocando idéias com outros realizadores, você se sente influenciada por filmes que vê, outras formas de arte a seu redor, um panorama de realizadores que te interessam?
Naomi Kawase - Na verdade, toda forma de arte verdadeiramente surgida e nascida das pessoas me agrada muito, pois meus filmes também não deixam de tentar ser isso. Minhas obras, meus filmes, talvez fujam um pouco das formas mais padronizadas de cinema, mas acredito que existem muitos outros realizadores que estão continuando também a fazer essa arte mais “humana.” Acredito, talvez, que posso de alguma forma estar dialogando com este tipo de pessoa. De qualquer forma, não penso muito sobre movimentos cinematográficos. Na realidade, acho que se olhar para os meus passos, estarei tendo, isso sim, uma conexão com a natureza e com o mundo antes de tudo.
6 - Pra terminar, se for possível, nos conte um pouco agora sobre seus próximos passos. Fale sobre o projeto de If Only The Whole World Loved Me, seu próximo filme... O que você já poderia me falar sobre o filme?
Naomi Kawase - If Only the Whole World Loved Me foi pensado junto com a mesma produtora que produziu o Shara em 2003. Kyoko Inukai escreve o roteiro e a atriz protagonista será Kyoko Hasegawa. Convidamos Caroline Champetier para a fotografia e Gregoire Colin fará parte do elenco. O filme será uma história de intercâmbio entre pessoas através da massagem tailandesa. Vamos filmar na Tailândia, a edição será feita a partir de novembro próximo e pretendemos passar nos cinemas do Japão no próximo verão. Acredito e espero que o público tenha uma sensação de liberdade (“open-mind”) e se sinta animado assistindo a este novo filme.

FLORESTA DOS LAMENTOS (Mogari no mori) de Naomi Kawase (Japão, 2007)
By Felipe Bragança

Naomi Kawase estava já na memória desde que seu Shara tinha aparecido, chuvoso, celebrando a vida como explosão de movimento (um movimento não de ida a um lugar, mas de agitação). Agora, com Floresta dos Lamentos, ela refaz-se num espelho quebradiço – encontra-se aqui a sensação de um nascimento que é também o de um aborto, de uma negação: o filme é um útero em que habita a memória do corpo/imagem todo.
É um filme que narra o mínimo não por fetiche do gesto banal, mas pela atenção ao afeto febril. É antes de tudo um ritual de inflação e deflação que nos convida para uma dança murmurosa no meio da mata – dançar com fantasmas é dançar com um filme. É um ritual de nascimento, grito, histeria, choro, dor, explosão, água vindo rápida e pesada! É a câmera que flutua, que flutua o tempo todo (não está na mão, está no vento). É um olhar que vai nos liberando do estado descritivo e vai nos deixando pairar por entre as coisas. Deixando o olhar vagar, feito vento, brisa, transpiração...
A construção das panorâmicas sem começo ou fim, vão indicando essa forma de flutuação pesada, em que sempre parece haver algo a se ver, mas nunca há, somente mais verde, mato, mais trilhas, mais paisagem, mais eternidade desordenada. Uma eternidade dolorida! Mas imensa... Imensa e cheia de passagens de luz entre-folhas. Naomi Kawase filma a paisagem como a imersão no próprio corpo de uma protagonista feminina que é antes de tudo um fantasma.
Machiko está no labirinto, levada por seu guia saudoso e dormente. Nesse caminho de luto, a moça persegue, ri, se expande, corre atrás do corpo cansado do homem, cuida. Cuida! Procura calor, adota o corpo do outro, abriga a pele do outro, esquenta, sua, se molha.
Catarse. Naomi Kawase filmou um parto e esse parto é um filme. Um parto de luz boa, mas luz que machuca. Úmido, quente, dolorido, desesperador, novo, aliviante, fim de mundo, começo.
A sonoridade que se contraí e expande, das caixas laterais às caixas centrais da sala de cinema, os planos que vão do olhar aberto do detalhe e ao impacto. Não à toa, o começo do filme é assim: aquele verde aberto nos joga para um detalhe de um machado numa casca de árvore. Do conforto espacial ao impacto localizado e duro, seco.
O filme é essa habitação dessa contração criativa do corpo. Não é fácil, não. Não se trata disso de achar “consolo”, não se trata de “uma forma certa”, como a frase-lema de uma personagem nos convida a aderir. Não há certa forma, trecho certo, direção certa ao que se afeta. A coisa se dá em si mesma, como o filme. E aí, se o prazer se perdeu na memória que não se vai, existe ali ainda o luto como uma alegria do alívio que nos surpreende: o lamento, a resistência, de um corpo que ri, berra, corre, explode, nasce de novo!
A imagem do cinema está ali adiante por causa disso: porque é essa acumulação uterina, muscular, nervosa. Cansativa. Cansativa........ (O que pode um corpo cansado? Acima de tudo é um corpo que tudo pode.) Um corpo cansado é o começo de um novo corpo... prazer ou perdição.
Não para servir ou obedecer a ordem de uma felicidade agendada por ansiedade – mas para nos oprimir e liberar, deixar abrir-se o peito e respirar de novo numa correnteza. Uma correnteza que Kawase costura feito um cafuné ou um estrangulamento.
Floresta dos Lamentos dói. Contrai. Expande. Não uma imagem-que-dói porque expõe a crueza gráfica, mas pelo acúmulo de latejar que ela vai sobrepondo como um lamento, um murmúrio repetido, um ir e vir da visualidade, da narração e da ocupação do espaço...
Chorar por 2 horas não resolve!.... E a coisa se dá assim: de repente, quase sem querer. Melodia fácil que se acerta sem estudo – dedos no piano vão e vem. Mas que aparece no meio de um desespero quase infantil, não da fuga (!).

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